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História do Aborto

Lucia Bardini

01/12/2024

A prática do aborto é um dos temas sociais mais debatidos do nosso tempo. No entanto, a história do aborto remonta há pelo menos quatro milénios. Voltemos atrás no tempo, até às primeiras civilizações antigas, que já naquela época estavam familiarizadas com esta questão controversa.

As civilizações humanas mais antigas, cuja existência estava estritamente ligada a valores religiosos e morais específicos, viam a interrupção induzida (deliberada) da gravidez como uma grave transgressão ética e religiosa, e nalguns casos até como um homicídio. Ainda assim, em raras ocasiões, os abortos eram realizados na maioria das culturas antigas através de meios não cirúrgicos, como o jejum, a sangria e exercícios físicos extremos.[1]
A primeira evidência de um aborto induzido por meios médicos foi encontrada num papiro egípcio de 1550 a.C., que também continha diversos outros temas ginecológicos.[2] Como o aborto já era praticado naquela época, surgiu a necessidade de regulamentação específica. Manuscritos arqueológicos da China e do Egito antigos contêm as primeiras leis gerais sobre regulação reprodutiva, permitindo o aborto em casos raros e com o uso de ervas abortivas. Quando uma gravidez era interrompida por uma mulher sem o consentimento do marido, aplicavam-se penas severas. [3]

Os cidadãos da Roma e da Grécia antigas também não eram alheios à interrupção intencional da vida humana antes do nascimento. Os escritos de filósofos de renome, como Platão, Hipócrates e outros, apresentam uma grande variedade de plantas utilizadas para induzir abortos. Médicos gregos e romanos recorriam a curetas, jejum, banhos de ervas e à compressão do abdómen para expulsar os membros sem vida do feto como métodos comuns de aborto.[4]
Ainda assim, os médicos da antiguidade tinham de cumprir o “juramento de Hipócrates”, que proibia o uso de pessários para induzir o aborto, e alguns estudiosos interpretavam esse juramento como uma proibição mais abrangente do aborto induzido.[5] O Estado romano via o aborto, de um modo geral, como um mau exemplo para a sociedade romana e uma violação dos direitos parentais, sobretudo do direito do pai de gerar descendência. Assim, alguns imperadores romanos, como Caracala, puniam médicos e parteiras que praticavam abortos com exílio temporário.[6] Além disso, escritores romanos como Ovídio referiam-se ao aborto como um “costume perverso”.[7]

Da Antiguidade Tardia até ao início da era moderna, a Europa foi amplamente moldada pelos valores cristãos, que procuraram pôr fim ao aborto induzido nos reinos governados por soberanos cristãos. Seguiu-se uma longa época de unidade entre o poder secular e religioso, na qual o aborto se tornou – ainda mais do que antes – uma prática muito rara, ocorrendo apenas em locais escondidos. Esta tendência manteve-se até ao século XIX, uma época de regulamentações rigorosas contra o aborto desde a conceção até ao nascimento, devido à elevada taxa de mortalidade associada à realização de abortos cirúrgicos por médicos clandestinos.

Com o surgimento da primeira vaga do feminismo no final do século XIX e início do século XX, uma nova perspetiva sobre o aborto foi criada: as primeiras feministas, como Elizabeth C. Stanton, Susan B. Anthony, Matilda Joslyn Gage, Victoria Woodhull e Alice Paul, desviaram o foco para a responsabilidade dos homens na sociedade. Procurando criar melhores condições de vida para as mulheres das classes média e baixa, estas pioneiras viam o aborto como “a máxima exploração das mulheres”, pois consideravam que isso as objetificava como meros instrumentos de prazer, sem dar aos homens a oportunidade de assumirem responsabilidade por elas e pelos seus potenciais filhos.[8]
Susan B. Anthony acreditava que abortar crianças era inútil, pois não resolvia as causas profundas dos problemas sociais.[9] Já Tennessee Claflin acrescentou: “O aborto é apenas um sintoma de uma desordem mais profunda do estado social…”. [10] Além disso, estas mulheres estavam muito conscientes do perigo dos abortos seletivos com base no sexo, como Alice Paul afirmou: “Como se pode proteger e ajudar as mulheres matando-as quando ainda são bebés?”[11]

O século XX marcou um aumento constante das taxas de aborto devido à legalização (ou, pelo menos, à descriminalização) em muitos países europeus e à produção em massa de pílulas abortivas nas décadas de 1920 e 1930. O primeiro país em território europeu a legalizar o aborto foi a RSFSR, em 1920 (mais tarde União Soviética). [12] Muitos dos pioneiros do aborto vieram do movimento eugenista, que promovia a melhoria das qualidades genéticas da humanidade, ao mesmo tempo que marginalizava grupos de pessoas consideradas “indesejadas”. A Planned Parenthood, atualmente a maior organização que promove o aborto e outras técnicas de “planeamento familiar”, tem as suas raízes na eugenia – sendo a ginecologista Margaret Sanger a sua fundadora. [13] Para a Alemanha nazi, o aborto era utilizado por razões eugénicas, como a eliminação de crianças com deficiência e a prole da população “não-arianos”.[14] Após a Segunda Guerra Mundial, a maioria dos países da Europa Ocidental – começando pelo Reino Unido – liberalizou o aborto a partir da década de 1970, como um dos resultados da revolução de 1968. Hoje, o aborto é permitido na maioria dos países europeus, mas com diferentes limites de gestação. Em 2024, o estado francês foi o primeiro país no mundo a incluir o aborto como um direito civil na sua constituição nacional.[15]



[1] Georges Devereux, “A typological study of abortion in 350 primitive, ancient, and pre-industrial societies.” In: Harold Rosen (ed.): Abortion in America: Medical, psychiatric, legal, anthropological, and religious considerations (Boston, 1967) https://www.ncbi.nlm.nih.gov/nlmcatalog/100996513.
[2] Jeremy M. Norman, “The Ebers Papyrus, the Most Extensive Record of Ancient Egyptian Medicine,” HistoryofInformation.com, https://www.historyofinformation.com/detail.php?id=1353.
[3] Carole Joffe, “Abortion and Medicine: A Sociopolitical History“ (2009), 1-9.
[4] John William Klotz, “A Historical Summary of Abortion from Antiquity through Legalization” (St. Louis,1973)/Soranus, “Gynaecology,” 1.56-1.65.
[5] John M. Riddle, “Contraception and abortion from the ancient world to the Renaissance” (Cambridge, 1992).
[6] J. Robert Sallares, “Abortion.” In: The Oxford Classical Dictionary (3rd ed.) (Oxford, 2003).
[7] “Ancient Roman Abortions & Christians,” earlychurchhistory.org, https://earlychurchhistory.org/medicine/ancient-roman-abortions-christians/.
[8] Angela K. Derr, Mary Krane, “Feminism and Abortion”, in: History Today. 49 (8): 34–35.
[9] Anthony, Susan B., “Marriage and Maternity” in: The Revolution (1869).
[10] Tennie C. Claflin, “My Word on Abortion, and other Things”(1871), victoria-woodhull.com, https://www.victoria-woodhull.com/wc092300.htm.
[11] Serrin M. Foster, “Who really marches for Women’s Lives?”, feministsforlife.com, https://www.feministsforlife.org/who-really-marches-for-womens-lives/.
[12] Heer, David, “Abortion, Contraception, and Population Policy in the Soviet Union” Demography 2 (1965): 531-39.
[13] Sara McCrea, “Eugenics No Matter What?: An Investigation of the Eugenic Origin of Planned Parenthood and its Effect on Contemporary Society.” In: Black & Gold 1/5 (Wooster, 2015), https://openworks.wooster.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1012&context=blackandgold.
[14] Trials of War Criminals Before the Nuernberg Military Tribunals under Control Council Law No. 10 (Volume 4), 1947, 609-10.
[15] George Wright, “France makes abortion a constitutional right,” BBC.com, https://www.bbc.com/news/world-europe-68471568.

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